Desde quando foram idealizadas, as redes sociais tiveram como objetivo principal a conexão de pessoas por meio de um ecossistema artificial, o qual serviria apenas de elo para religar os laços perdidos pelo caminho, ou fazer novos de forma mais rápida ou eficaz. E foi dessa forma que o mundo moderno começou um longínquo processo de relativização do “eu”, abrindo-se um leque imenso de possibilidades alternativas ao ceticismo do debate pessoal que, de imediato, deflagra a realidade material e objetiva de seus atores. E o que se vê hoje é a relativização não apenas do “eu”, mas também de todo o contexto a ele ligado, o “quem sou” e “onde estou”; embrião para o já tão falado metaverso, que representaria a relativização por completo do conceito que hoje temos de concreto.
A relativização do “eu”, se analisada profundamente, é bastante antiga e chega a se confundir com movimentos de vaidade absolutamente normais dentro do contexto humano. Quando uma mulher de cabelos cacheados submete-se a processos químicos para obter um efeito temporário liso, essa mulher está relativizando seu “eu” e, assim, optando por um estereótipo não necessariamente mais belo, mas que melhor lhe agrada. Da mesma forma, o homem que tinge os cabelos brancos que começam a aparecer ao longo do tempo, estão em processo de relativação do ego, deflagrando a vaidade de furtar dos demais o seu envelhecimento. Essas atitudes passaram a ser tão comuns e inerentes ao cotidiano das pessoas que se tornam invisíveis, nada mais do que partes de um contexto ao qual já estamos totalmente habituados, a ponto de achar absolutamente normal.
O segundo estágio da relativização do “eu” começou quando as intervenções temporárias passaram a ser permanentes, sobretudo com o advento das cirurgias plásticas e procedimentos estéticos, os quais deram início a um processo de metrificação do belo, criando-se uma fórmula matemática perfeitamente atingível desde que paga. Seria uma pseudo democratização do “eu” ideal, universalmente aceito e entendido como belo, em oposição e, até mesmo, repugnância ao natural. E foi especificamente para esse público que o atual conceito de redes sociais entrelaçou-se de forma harmoniosa, já que os recursos de vídeo e imagem contemporâneos conseguem, com perfeição cada vez maior, relativizar os contextos e, artificialmente, criarem protótipos e ideias, agradáveis e vendáveis das variantes “quem sou” e “onde estou”, o que induz à criação de um universo idealizado, absolutamente dominado por seus criadores, os tais influencers, podendo causar graves danos à psique dos seus influenciados.
Isso porque o equilíbrio psíquico vai se tornando mais sólido à direta proporção do autoconhecimento do indivíduo, o qual propicia – ante a maturidade psicológica – a autoaceitação, que é elemento fundamental para a manutenção da saúde mental do ser humano. Na contramão desse processo vem as redes sociais, nas quais influenciadores apresentam um universo completamente onírico, cada vez mais divorciado da realidade concreta. Mas o grande problema está no objeto direto da influência (geralmente suscetível de comercialização), o qual faz parte do mundo objetivo das coisas concretas, estabelecendo um conflito na psique do influenciado.
A influência indireta (contextual) está no estilo de vida do influenciador (sempre ostentando um caso de sucesso de empreendedorismo digital), introjetando no influenciado a sensação de que também poderá passar por bonança parecida após empreitada semelhante, geralmente em tempos recorde e baixos investimentos financeiros. Tem-se aí o primeiro processo de frustração do influenciado, o qual não consegue compreender – em seu pleito naturalmente comparativo – os motivos que diferem o sucesso do influenciador que começou do zero e hoje vive de forma nababesca do seu fracasso inerente e, até mesmo, natural diante das primeiras tentativas de empreender. Dessa maneira, a sempre crescente pujança nos negócios e estilo de vida do influenciador (severamente distante da realidade objetiva e criada artificialmente com os mecanismos acima mencionados) acaba se tornando um espelho malévolo para o influenciado, por meio do qual apenas consegue enxergar seus fracassos, os itens que não tem e aqueles que, mesmo tendo, não lhe tiveram o mesmo efeito de sucesso. Em sentido contrário, o estilo de vida descolado da realidade ostentado pelo influenciador acaba também por tumultuar seu equilíbrio psíquico, fazendo que o mesmo acabe se perdendo entre as indicações e a publicidade, bem como dos universos real e onírico, o que acaba fazendo eclodir casos de depressão e outros transtornos relacionados aos verdadeiros e reais conceitos do “eu”, “quem sou” e “onde estou”, os quais acabaram ficando confusos entre si diante de tantas possibilidades tecnológicas, filtros e outros dispositivos que permitem, com facilidade, alterar a verdade objetiva do universo, caminhando, a passos largos para o metaverso. Um caminho, aliás, bastante temerário já que as grandes empresas detentoras e reguladoras das redes sociais deveriam, ao meu ver, utilizar de sua estrutura e capilaridade exatamente para fornecer ao público ferramentas claras, eficazes e objetivas de controle de realidade. Isso tornaria claro para o influenciado quando está sendo destinatário de uma publicidade profissional ou de uma dica, por exemplo. Se as grandes detentoras das redes “policiassem” seus próprios ambientes, combatendo os fakes, os fatos prevaleceriam, o que induziria a um incremento na saúde mental de todos.
Marcelo Henrique